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Bacalhau - Bolinhos, Cremes e Pratos diversos

Moby Ripp












Meu nome é Ismael. Sou um veterano do mar. Agora, já quase aposentado, lanço-me a uma nova aventura. Procurei onde podiam aceitar um alquebrado e velho marinheiro, mas, todas as portas se fecharam à minha frente.

Um dia, encontrando todas as estalagens cheias, na enevoada e fria costa setentrional do país onde adotei como meu, o frio intenso me obriga aceitar dividir o quarto com um outro homem.

Queequeg, nome estranho, um ex-canibal, um guereiro, mas, um ser humano digno agora. Ficamos amigos, aliás, tornou meu melhor e único amigo.

Procurando por empregos para sobrevivermos, conhecemos o Capitão Ahab, dono de um baleeiro, que possuia olhos muito cerrados, em uma face quase desfigurada, e temperamento obsessivo, com um único desejo em sua vida:
Encontrar novamente Moby Ripp.

Como só loucos aceitavam singrar os mares com Ahab, e poucos, além de nós, haviam no local, conseguimos as vagas.


Embarcanos no baleeiro de Ahab, chamado The Pequod. 
Eu e Queequeg nós vimos envolvidos pelo desejo do capitão.  Impossível não sentir sua obsessão de encontrar Moby Ripp rondando os alojamentos e o convés, o tempo todo.

Cortamos os sete mares, atrás deste ser mitológico, que anos atrás havia tido um encontro marcante com Ahab. Ele nunca mais esqueceu deste momento.

Meses a fio, velejando, sofrendo calmarias, tempestades, privações, a fome, avistamos a ilha onde poderíamos encontrar o mítico Moby Ripp, mais conhecida como a Ilha do Qorthon.

Qorthon era um templo escondido nas matas, encapsulado pela vegetação luxuriante e isolado do mundo que, apenas, recebia convidados. Muitos saiam satisfeitos, outros voltavam sempre, como se o vício os tivesse abocanhado.


Desembarcamos apreensivos, olhando de lado para o capitão Ahab, que começava a salivar intensamente.
Não entendemos, mas como fiéis cães, seguimos firmes ao seu lado.

Ao adentrar o Qorthon, Ahab olha fixamente para a a sacerdotisa e garçonete e pergunta solenimente como se estivesse à frente do Oráculo:

- Hoje tem o Bolinho de Bacalhau do Ripp ?

Nos entreolhamos, assustados e incrédulos, pois a fama do Bolinho de Bacalhau do Ripp sempre nos pareceu uma lenda, uma estória que os velhos lôbos do mar contavam para seus ouvintes quando estavam com fome e, malevolamente, queriam torturá-los.


A formosa virgem, pelo menos é o que falam, nos atendeu e respondeu que sim, pois todo dia tinha Bolinho de Bacalhau do Ripp na Ilha, se não a fúria dos habitantes locais poderia trazer destruição, morte e falência.

Queequeb e eu, somos testemunhas da quantidade de habitantes locais que invadem o recinto na hora do almoço, ávidos por saborear a iguaria. Como se estivessem em um transe, antes da refeição, todos, quase sem exceção, pediam a porção dos inebriantes bolinhos.

O Capitão Ahab, chama-nos à sua mesa e lá conseguimos, enfim, experimentar a deliciosa comida, quando Ahab diz:


- Ismael, tenho uma missão para você, disse ele, enfático.

Não podendo dizer um não ao meu patronal capitão, baixei meus olhos e escutei:

- Quero que vá à cozinha de Moby Ripp e descubra como ele é feito, pois, outrora perdi uma perna e fiquei desfigurado brigando pelo último bolinho que tinha à venda aqui. Um fato que jamais esquecerei.


Procurei Queeqeb com o olhar, mas com esse nome, nem ousei chamá-lo em voz alta. Baita nominho estranho esse.

Parti para a missão sozinho, deixando meu melhor amigo estirado em uma confortável cadeira à beira do mar, provavelmente,  digerindo mais um bolinho servido pela virgem, ou pelo menos, como ela diz, mas quase ninguém crê.

Esguerei-me pelo caminho que levava à cozinha e lá pude constatar a poderosa receita que havia feito Ahab tornar-se um perneta.

Fotografei para provar a Ahab que havia cumprido a missão e escrevi um relato de como era feito.





Pela fresta de uma das portas, pude ver o famoso cozinheiro colocando lascas de bacalhau em um vazilhame.
Suspeito que tenha feito isso na noite anterior, pois o peixe parecia já estar começando a desfiar. Ele trocava a água a cada 8 horas, com certeza, deve ter trocado umas três vezes, pelo menos.
Lembrei-me que Lidiane, minha mãe, fazia isso.

Vi quando ele salteou levemente as lascas em sua mágica frigideira. Olhou-me nos olhos, bem no momento que fotografava a ação escondido. Aquele lugar era mágico, parecia que os espíritos de grandes cozinheiros e as fadas estavam lá.


Cortou em pequenos pedaços o bacalhau, que deveria ter umas 250 gramas, muito bem desfiado e deixou de lado.
Cozinhou quatro batatas médias, quase grandes, e junto havia algo mais, que me pareceu uma mandioca pela cor mais esbranquiçada. Fez com esses vegetais um espécie de purê.


Mas houve um fato muito estranho, algo que, estes olhos que a terra há de comer, nunca haviam visto:
O cozinheiro colocou as lascas de bacalhau em um pano muito limpo e começou a esfregar como se estivesse lavando roupa.
Ao meu espanto pude ver o resultado.

Um bacalhau quase dissolvido, desfiado muito fininho, perfeito para ser encorporado no purê e assim vi que foi feito por ele.
Vi, também, que colocou junto ao purê e começou a temperar essa massa. Colocou sal, pimenta do reino, que ele moeu na hora, salsinha picadinha e, de repente, para meu assombro, quebrou um ovo nessa mistura.

Pegou uma garrafa, que acredito ser de vinho branco e colocou um pouco nessa mistura. Se eu fosse ele, usaria vinho do Porto, pois conta uma lenda perdida, que o mestre Saul Galvão* fazia assim.
Com as mãos começou a misturar tudo durante uns dois a três minutos, em um ritual constante e monótono, e, novamente, colocou mais um ovo e continuou a misturar até que essa massa ficasse bem homogênia.

Fiquei pasmo e tive vontade de chamar Queequeb para ver, mas o cozinheiro, rapidamente fez dois tipos de movimentos. Pegava essa massa e enrolava como um brigadeiro e depois achatava, deixando na forma de uma balãozinho de São João.
Deixava sobre um tabuleiro, até terminar todos.
Pela quantidade dos ingredientes, deu para ver que ele fez 15 a 18 bolinhos de bacalhau do tamanho de uma mão vista de lado.

Fiquei assombrado com a rapidez que isso ocorreu !!

Um tacho com óleo limpo colocado sobre o fogão, foi posto no fogo e vi que ele esperava aquecer. Pelo suor que escorria de seu rosto, a temperatura desse tacho devia estar por volta de 170º a 180º quando ele começou a colocar essas bolinhas em forma de bola de futebol americano e fritava até ficarem douradas e isso foi muito rápido, pois a massa que ela contém já está praticamente pronta para consumo.
Isso deve ser apenas para criar um crosta externa.
Ao retirar, colocou sobre uma grade, mas ele poderia ter colocado sobre papel toalha, se não a tivesse.


Eu, Ismael, vi e juro que a facilidade é imensa.
Não foi necessário arpões e nem grandes manobras para servir.

Corri para o salão e juntei-me ao capitão e a Queequeb.

Fomos servidos em um bandeja com os míticos bolinhos ainda quentes. Comemos muitos e ficamos satisfeitos, mas a fúria de Ahab não permitiu que ele ficasse tranqüilo à mesa.

Ele queria mais...

Ele queria o Creme de Bacalhau do Ripp.

Ficamos, eu e Queequeb, quietos, enquanto Ahab grita  pelo cozinheiro para que ele venha à nossa mesa.


Para nosso espanto, Moby Ripp, pessoalmente, vem nos atender, mas conforme ele se aproximava, os olhos de fúria de Ahab já nos previnia que algo iria acontecer. E não erramos.

Com sua voz alta, como todos capitães de baleeiros, pois é necessário tê-la para comandá-los, disse ao cozinheiro:
- Moby Ripp, não saio daqui, ninguém me tira, até que nos conte como faz os pratos com bacalhau deste cadápio, cuja fama alcança os sete mares.
Para ser mais convincente, desembainhou sua longa e afiada espada e colocou-a sobre a mesa.


Levando a mão até a cintura, onde reluzia um poderosa pinça que pensamos que iria sacar, Moby Ripp olha dentro dos olhos de Ahab, por alguns segundos que nos pareceu um eternidade, cinge a face, mostrando as veias saltando para fora da testa e profere palavras que jamais pude esquecer.
Ele disse em alto e bom tom:

- Claro, na boa. Ensino fácil. Prestenção:

Primeiro, o Bacalhau do Porto com Coulis de Tomate.




Apenas dessalgo o peixe, colocando por 24 horas em água, que a troco, pelo menos, três vezes. Fervo as postas no leite por 5 minutos, retiro e tempero com sal, pimenta do reino e azeite de oliva.

O coulis de tomate é só passar pelo processador ou macerar com o pilão, umas 6 a 8 folhas de manjerição grandes e. depois, adicionar dois tomates sem pele e sem sementes, cortado em cubinhos pequenos.
Coloco uma colher de chá de açúcar, uma boa pitada de sal, pimenta do reino a gosto e rego com azeite.
As vezes, ao gosto do cliente, coloco umas azeitonas picadas e termino com cebolinha, também, picada.

O Capitão, Queequeb e eu babamos na foto que havia sobre a mesa.
 
 

Queequeb viu outra foto e achando-a diferente, perguntou:
- Ripp, e esse, tem diferença?
Fulminando Queequeb com o olhar, Ripp se vê obrigado a contar como fez isso:






Esta é a versão de mesa do bolinho de bacalhau, apenas, acrescida de tomates cerejas e de umas lascas de bacalhau cozidas em água fervente por 4 minutos.
Essas lascas devem ficar mais "al dente" e a porção corresponde a uns três bolinhos de bacalhau. Os fiéis a comem com garfo e faca.
 
 
Por minutos eu me contive, mas minha curiosidade não me deixou ficar calado e falei:

- E se eu quiser algo mais cremoso ?


Desta vez, acho que já cansado das explicações e vendo-se sem opções de livrar-se rapidamente destes curiosos clientes, Moby Ripp explica direitinho como faz o Creme de Bacalhau.

- Esse, embora tenha mais fases, não é difícil de fazer.

Comece fervendo duas batatas e, ao ficarem moles, amasse ou esprema. Deixe-as reservadas.
Em uma panela, coloque uma colher de manteiga e meia cebola média, fatiada bem fininho. Depois adicione uma colher de farinha de trigo e mais uma colher de manteiga e cozinhe esse "roux" por uns 5 a 6 minutos, até começar a ficar marrom.
Acrescente pouco a pouco, para encorporar, leite.
Vai formar um molho grosso, que com algumas mudanças, chama-se Bechamel, ou molho branco.

Acrescente o bacalhau desfiado e mexa bem.
Aos poucos, vá colocando a batata amassada (ou espremida), sempre mexendo. Quando ficar homogênio, coloque creme de leite, misture e ao desligar o fogo, acresça cebolinha picada.

Quando servir, pode servir puro, como um creme mesmo ou pode acompanhar umas postas de bacalhau cozidas no leite, batatas assadas e tomates cerejas.


Outra vez nos espantamos com o papiro, dentro de uma carteira de couro negra, que foi deixado sobre a mesa. Era um código numérico, mostrando que tudo isso não custava caro.
O Capitão pagou sem reclamar, embora seu rosto de satisfação estivesse patente.

Ahab, Queequeb e eu estavamos satisfeitos e agradecemos ao cozinheiro da ilha.

Rumamos, novamente, ao porto, onde zarpamos em direção norte para pescarmos bacalhau, nas gélidas águas do Mar da Noruega,  para tentarmos reproduzir essa mágica experiência, quase sobrenatural, deixando de lado a caça da baleia, animal que anda perto da extinção e que antes Ahab havia enfrentado e sobrevivido por milagre.
Esse novo rumo, causado pela comida do Moby Ripp, deve ter salvado as vidas de muitos de nós, que já prevíamos uma luta mortal entre Ahab e sua arqui-inimiga, a baleia chamada de Moby Dick.

Eu, Ismael, vi, comi e delicie-me.








* Na estória do livro Moby Dick, a luta final entre o capitão Ahab e o cachalote branco Moby Dick, termina com a morte de quase todos, inclusive da tripulação do navio The Pequod, de Queequeb e Ahab.O único sobrevivente é Ismael.

O sucesso deste livro de Melville deu-se por causa da rica descrição da vida em um baleeiro, transportando o leitor ao local de maneira quase real.
A irracionalidade humana, interpretada de forma cabal pelo personagem do Capitão Ahab, mostra que não há obstáculos ou vidas que possam deté-la. Sua luta é de anos, onde há enfrentamentos anteriores que mutilam, não só o capitão Ahab que perde uma perna e tem o rosto desfigurado, mas o animal, que na verdade só demonstra a violência para se defender.

É um livro longo e cheio de detalhes, mas é um clássico que as pessoas deveriam conhecer.
Nos Estados Unidos é leitura obrigatória, assim como a nós são alguns autores. Só que em vez de falarem de mazelas, pobreza e cortiços, cutucam mais fundo e, esconde em suas palavras, uma dura crítica ao comportamento humano perante a natureza.

No fim, ela sempre vence, embora possamos mutilar aquilo que nos criou, porém, um dia sua revolta contra nós acontece. E sempre perdemos.


** Saul Galvão foi um jornalista, autor do livro Prazeres da Mesa e um grande entendido nas artes da culinária e dos vinhos.
Faleceu em 2009 e deixou saudades em que o admirava, como o autor deste blog, pelo seu jeito expansivo, até cruel, em certos momentos, mas com uma base solidificada pela experiência.
Rest in Peace.

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